Bonito (MS) – A companhia De Perna pro Ar, de Canoas (RS), retornou ao 19º Festival de Inverno de Bonito para encenar “O Lançador de Foguetes”. Dessa vez, Luciano Wieser interpreta um excêntrico cientista em sua missão de colocar foguetes para voar. A montagem foi apresentada no Centro de Múltiplo Uso, no entardecer deste domingo (29). Materializar o pensamento a partir de princípios da física quântica é o mote dessa brincadeira que envolveu o público e, sem palavras, o colocou a serviço do personagem e de sua meta.
Novamente, a cenografia, o figurino e a maquiagem, assim como a gestualidade de Luciano, serviram ao objetivo de colocar a dramaturgia em movimento. De dentro de uma caixa são retirados apetrechos improváveis e um triciclo. Essas são as ferramentas que o cientista tem à disposição para realizar seu objetivo. Aos poucos, o personagem conquista o público com o mistério que encerra sua missão. Pouco se sabe sobre o que está fazendo. Medidas são tomadas, a direção do vento e as distâncias. Logo, desenhos são feitos no chão e, aos poucos, pessoas da plateia são convidadas a assumir postos importantes.
Das crianças que fazem geringonças rodarem ao catador de foguetes, que deve correr atrás dos foguetes lançados ao céu, todos entram nessa grande brincadeira. É assim que Luciano se refere ao espetáculo criado em 2006, que nasceu de uma pesquisa que o filho mais velho deveria fazer. “Tudo nasceu de um projeto para uma feira de ciências. Meu filho precisava fazer um foguete e disso pensei que daria um espetáculo”, comenta. O espetáculo tem direção e cenografia de Luciano. A maquiagem e o figurino é assinado por Raquel Durigon. A trilha é de Jackson Zambelli.
Confira abaixo a conversa que tivemos com o ator, dramaturgo e diretor Luciano Wieser e a produtora, figurinista e maquiada Raquel Durigon.
A ciência se mostrou bastante presente nos dois espetáculos apresentados em Bonito, com um flerte muito grande com a ficção científica. Como é a relação que vocês estabelecem com esse universo?
Luciano Wieser – A gente gosta de estudar bastante questões da física e quando começamos a construir esse espetáculo, estávamos pesquisando a física quântica. Era uma forma de movimentar as nossas vidas mesmo. Começamos a pensar em como levar isso para o público e fazê-lo perceber essa energia que pode se materializar, a energia do pensamento. No “Lançador de Foguetes” isso é muito presente. Sem palavras, o personagem parado em frente a uma pessoa e tentando transmitir uma mensagem, até que aquele espectador entende e executa uma ação. Ela descobre que precisa ajudar. É uma grande brincadeira, mas é algo que conta com a ajuda de todo mundo para que os lançamentos ocorram. Gostamos disso porque tem a ver com a gente.
E como isso se dá em “Automákina”?
- W. – Já no “Automákina – Universo Deslizante” é outra coisa, a teoria das cordas e outros conceitos acabaram movimentando nosso processo criativo. Não que isso esteja ali explícito, mas são coisas que a gente estuda e, a partir disso, a gente detona um processo criativo. O som, o primeiro som, que causa a vibração da máquina e faz com que as pessoas mergulhem nesse universo.
E as geringonças elétricas, mecânicas e sonoras, de onde surgiu a ideia de trabalhar com elas?
- W. – No começo da nossa trajetória, eu lembro de ter visto um livro que gostei muito. Ele trazia fotografias de uma companhia francesa chamada Royal de Luxe, com estruturas gigantes e bonecos de mais de 20 metros. O que me impressou, no entanto, foram as pessoas fotografadas. Elas assistiam de boca aberta, extasiadas com aquelas figuras gigantescas. Ali eu tive certeza do tipo de trabalho que eu queria fazer, algo que mexa dessa maneira com cada pessoa do público. Algo que desequilibre, que quebre a lógica da vida dela. Por isso trabalhamos com essas máquinas e por isso essa brincadeira do foguete. É algo que não é normal no cotidiano, mas te faz mergulhar numa fantasia e aceitar como se fosse uma teoria, mas que na verdade é parte de uma grande brincadeira. Um momento de estar junto compartilhando essas energias.
Como foi criado o espetáculo “O Lançador de Foguetes”?
- W. – É uma história maluca. Meu filho mais velho hoje tem 25 anos, mas quando era mais novo, com oito ou nove anos, ele teve que fazer uma experiência para a feira de ciências e assim surgiu o foguete. Fizemos a pesquisa, fizemos uma base para o lançamento e ele apresentou, ganhou um prêmio. Disso me veio essa ideia, eu disse “acho que isso rende um espetáculo”. Assim eu comecei a experimentar, disso surgiu uma performance que foi crescendo até que se tornou esse espetáculo.
Quando?
- W. – Estreamos o trabalho em 2006.
Como nasceu o figurino e a maquiagem de “O Lançador de Foguetes”?
Raquel Durigon – Partimos da concepção de que o figurino e a maquiagem são tão importantes quanto qualquer outro elemento dentro do espetáculo. Em todo espetáculo, pensamos e estudamos para o que ele se propõe. Neste caso específico, o personagem central é um lançador de foguetes, um cientista, que tem tudo a ver com a questão da física, da ciência. Esses dois elementos foram pensados a partir disso, por isso as fórmulas na cabeça do personagem e a roupa também instiga isso, com cores e formas que remetem ao átomo. Os símbolos são importantes e têm que dialogar quando o público vem assistir o espetáculo. As pessoas não podem desviar o olhar por algo que não combina com o espetáculo. Eu e o Luciano discutimos muito, somos uma família e pensamos tudo isso juntos até chegar em um lugar bem desejado.
Enquanto “Automákina” traz um personagem completamente fechado no seu universo, “O Lançador de Foguetes” tem uma proposta colaborativa. Como a companhia pensa a interação com a plateia?
- W. – Quase todos nossos espetáculos destacam a participação do público. Em “Automákina”, eu precisava daquele aprofundamento do personagem, tinha que ter um pouco do distanciamento por causa de toda a estrutura e porque a proposta era tocar em pontos mais profundos. Foi o primeiro espetáculo que teve foco mais no público adulto. As crianças piram também, mas dentro de uma outra lógica, mas os adultos encontram questões mais profundas a serem discutidas ali. Por isso preferimos tratar do personagem mais fechado nele, mas existe uma virada, quando ele vai buscar fora daquela máquina, armado de uma tarrafa, ele tem o primeiro contato real com o público. Mas mesmo assim existe uma simbiose de energia muito forte. Desde a chegada na roda, quando passo meu instrumento de medição pela primeira vez e vejo como as pessoas estão conectadas, já existe uma troca que é fundamental para que o espetáculo ocorra.
De que modo é feita a criação dos espetáculos?
- W. – Vamos construindo nossos trabalhos com base nessa cenografia viva. Vamos experimentando, vendo o que nos oferecem e a gente quase sempre trabalha com esses materiais que são reciclados e ressignificados, materiais que trazem uma energia muito própria, que nós buscamos em locais que têm história como ferros-velhos. O público ao ver algo absorve aquela história, existe um gatilho que detona algo. Não a história do objeto em si, mas a própria história refletida naquele objeto. Um prato, uma concha, daí tu tens outro caminho para entrar naquilo.
A dramaturgia vem antes ou depois?
- W. – A gente nunca parte do texto em nossas construções, sempre a ideia vem primeiro e então começamos a garimpar, a criar formas e ver como isso impulsiona a própria dramaturgia.
O teatro de rua sempre está aberto às intempéries, ao acaso. Na apresentação de hoje, uma briga próxima quase fez com que o espetáculo se encerrasse antes de planejado. Como é para você, Luciano, enquanto ator, lidar com essas mudanças repetinas?
- W. – Tem algo de maravilhoso nisso. A rua nos oferece, a cada dia, um novo espetáculo. Nunca mais vai acontecer o que houve hoje. Temos que estar muito abertos, inflados, para captar isso e saber como lidar. Hoje tivemos um problema forte, mas que é a vida acontecendo, que poderia ter um desfecho trágico. Num caso desses, tu tens que esperar um pouquinho, dar um tempo, mas permanecer ali presente, crescer e ver o momento de tentar resgatar o público e o espetáculo. Isso foi possível, mesmo que num momento tenhamos pensado que não teria mais como voltar. Mas a volta foi ainda mais forte, com mais público do que antes. Não é fácil, mas é provocante.
E por que o teatro de rua?
- W. – É um espaço que oferece uma multiplicidade de pessoas, todas juntas. Eu sempre me emociono muito. E as praças começaram, novamente, a ser pontos de congregação, de encontro entre as pessoas, onde surgem as ideias. Fomos muito tolhidos de nos expressar, mas essa força ninguém segura. Mesmo que não possamos, nós vamos. Estamos trabalhando na rua há 30 anos e vemos hoje o quanto está mais forte esse tipo de ação.
A companhia existe há 30 anos, o que significa para vocês fazer teatro há tanto tempo?
- D. – A companhia nasce como uma família, somos uma família e já tivemos vários caminhos dentro da arte. Nos tornamos um grupo muito conhecido por trabalhar com essas traquitanas e maquinarias, que é um trabalho mais raro, embora não seja único. Nós nos sentimos muito felizes por saber que esse tipo de arte tem o seu público, que as pessoas apreciam esse tipo de arte. Fazer teatro na rua é a grande vocação do nosso grupo, acreditamos que todas as pessoas tem o direito de acesso à arte e esse é um compromisso que temos com o grupo.
Texto: Thiago Andrade
Fotos: André Patroni